quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Os desertores

"Quase todos os desertores chegam a Hanawon com sintomas de paranoia. Falam aos sussurros e envolvem-se em brigas. Têm medo de revelar nome, idade ou local de nascimento. Seus modos, em geral, ofendem os sul-coreanos. Tendem a não dizer 'obrigado' ou 'desculpe'.

Perguntas feitas por caixas de banco sul-coreanos, que eles encontram em excursões para abrir contas bancárias, com frequência aterrorizam desertores. Eles desconfiam das intenções de quase todas as pessoas em posições de autoridade. Sentem-se culpados em relação aos que deixaram para trás. Angustiam-se, por vezes ao ponto do pânico, em razão de sua inferioridade educacional e financeira em comparação com os sul-coreanos.

Têm vergonha do modo como se vestem, falam e cortam o cabelo.


'Na Coreia do Norte, a paranoia era uma resposta racional a condições reais e ajudava essas pessoas a sobreviver', disse Kim Hee-kyung, uma psicóloga clínica que conversou comigo em seu consultório em Hanawon. 'Mas ela os impede de compreender como as coisas se passam na Coreia do Sul. É um verdadeiro obstáculo à assimilação.'

Adolescentes que vêm do Norte passam de dois meses a dois anos na Escola Secundária Hangyoreh, um estabelecimento de ensino em regime de internato para alunos com dificuldades, filiado a Hanawon. Ela foi construída em 2006 para ajudar jovens recém-chegados do Norte, cuja maioria é inapta para a escola pública na Coreia do Sul.

Quase todos eles se esforçam para aprender rudimentos de leitura e matemática. Alguns têm déficits cognitivos, claramente em consequência de desnutrição aguda na primeira infância. Mesmo entre os jovens mais inteligentes, o conhecimento de história do mundo reduz-se essencialmente a histórias pessoais míticas do Grande Líder, Kim Il Sung, e de seu querido filho, Kim Jong Il.

'A educação que se recebe na Coreia do Norte é inútil para a vida na Coreia do Sul', disse-me Gwak Jong-moon, o diretor de Hangyoreh. 'Quando a pessoa está com muita fome, não vai aprender e os professores não vão ensinar. Muitos estudantes passaram anos escondidos na China, sem nenhum acesso a escolas. Como crianças na Coreia do Norte, eles cresceram comendo cascas de árvore e pensando que isso era normal.'

Durante excursões aos cinemas, jovens desertores muitas vezes entram em pânico quando as luzes se apagam, temendo que alguém possa sequestrá-los. Ficam aturdidos com o coreano falado na Coreia do Sul, onde a língua foi contaminada por americanismos como syop’ing (shopping) e k’akt’eil (coquetel).

Consideram inacreditável que dinheiro seja armazenado em k’uredit k’adus (credit cards; cartões de crédito) de plástico.

Pizza, cachorros-quentes e hambúrgueres — itens básicos da alimentação de um adolescente coreano — lhes dão indigestão. O mesmo efeito é provocado pelo excesso de arroz — o alimento básico de outrora, que na era pós-fome se tornou comida de rico na Coreia do Norte.

Uma adolescente na Escola Hangyoreh fez gargarejo com amaciante de roupa, confundindo-o com antisséptico bucal. Outra garota usou sabão em pó como farinha de trigo. Muitos alunos ficam aterrorizados quando ouvem pela primeira vez o ruído de uma máquina de lavar em funcionamento.

Além de paranoicos, confusos e intermitentemente tecnofóbicos, os desertores tendem a sofrer de doenças evitáveis e males quase inexistentes na Coreia do Sul. Chun Jung-hee, enfermeira-chefe de Hanawon há mais de dez anos, contou-me que uma alta porcentagem das mulheres provenientes do Norte tem infecções ginecológicas crônicas e cistos. Disse que chegam muitos desertores contaminados por tuberculose que nunca foram tratados com antibióticos. 

Eles também chegam comumente com indigestão crônica e hepatite B. Muitas vezes é difícil diagnosticar enfermidades rotineiras, contou a enfermeira, porque os desertores não estão acostumados com médicos e desconfiam daqueles que lhes fazem perguntas pessoais e prescrevem remédios. Homens, mulheres e crianças têm problemas dentários graves resultantes de desnutrição e da falta de cálcio em suas dietas. Metade do dinheiro gasto anualmente em cuidados médicos em Hanawon vai para tratamento dentário protético. "

- Do excepcional "Fuga do campo 14", do jornalista americano Blaine Harden, que narra a história de Shin Dong-hyuk, único sobrevivente até hoje nascido e criado num campo de concentração norte coreano que conseguiu escapar.

Via



1 comentário:

  1. http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2013/09/delegado-conclui-que-mae-matou-filhas-e-pedira-exame-de-insanidade.html

    Acho que merece um postal.

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